Bateu à porta do apartamento
1304, logo ao lado. A porta custou a abrir. Atanásio já ia desistindo quando
finalmente alguém atendeu. Era um homem de meia idade, com hobie jogado sobre o
corpo de qualquer maneira. Na certa estivera dormindo.
- Quem é o senhor? O que
deseja? É da polícia? Eu já disse tudo o que sabia. Quando é que vocês vão me
deixar em paz?
- Calma, senhor. Não sou da
polícia, sou jornalista...
- Pois passe bem, disse
impaciente e contrariado o homem do apartamento 1304 fechando a porta com
violência.
Com esse Atanásio não
conseguiria muita coisa. Daria um jeito de ler o relatório da polícia sobre o
depoimento dele antes de voltar a procurá-lo. Talvez nem fosse necessário.
Foi ao apartamento 1301, há
uns quinze metros da porta de Virgínia e quem o atendeu foi uma senhora
elegantemente vestida com um cachorrinho nos braços.
- O senhor é da polícia?
- Não, senhora. Sou
jornalista.
- Do rádio ou da TV?
- De jornal, senhora. De O
Diário Carioca.
- Qual?
O Diário Carioca não tinha
muitos leitores na zona sul. Só o liam os empregados - diaristas, frentistas,
motoristas, babás, faxineiros, seguranças – dos bacanas. Os que soubessem ler,
obviamente. Os analfabetos contentavam-se com a primeira capa, em que apareciam
fotos dos gols do campeonato, moças em trajes sumários e eram exibidos flagrantes
de nossa guerrilha urbana diária: os cadáveres ensangüentados encontrados em
localidades que os leitores conheciam bem.
Foi por isso difícil
convencer a senhora do 1301 a lhe conceder uma entrevista.
- Não sei da vida de ninguém.
Vivo reclusa em meu apartamento, só com Timóteo, este meu último parente vivo.
Ela se referia ao cachorrinho,
que não largava um minuto.
- O senhor quer entrar?
Lá dentro, Atanásio
impressionou-se com a quantidade de objetos na sala. A dona tinha sofás,
cadeiras, mesa, lustres, poltronas, quadros, mesinhas, cômoda, tapetes,
cortinas. Jarros, cinzeiros, candelabros, vasos de porcelana, flores
artificiais, caixinhas de não-sei-o-quê. O apartamento mais parecia um
antiquário.
Chamou a atenção de Atanásio
uma vitrola imponente, aberta. Ao lado, uma pilha de discos.
- Só música clássica. O
senhor aprecia?
- Antes que Atanásio pudesse
responder, a senhora cortou seus pensamentos.
- Fui cantora lírica na
juventude. Cantei no Municipal, viajei, estudei na Europa.
- Que interessante. Atanásio
compreendia agora o porte altivo e um tanto afetado daquela senhora: era
artista!
- Ainda canta?
- Não! Desde que meu marido
morreu, abandonei os palcos.
- Sinto muito.
- Ele era maestro. De fama
internacional. Heriberto Giacommini. Conhece?
Atanásio fez uma cara que
dispensava resposta.
- Não se constranja. Quase
ninguém o conhece ou lembra dele. A música erudita é pouco difundida e
apreciada nos trópicos. Aqui só se ouve samba e outras coisas do gênero. Poucos
são os admiradores da boa música, do canto lírico.
Ela falava enquanto passeava
pela sala acariciando as poltronas com o cachorro, Timóteo, sempre no colo.
- A moça aí da frente, a que
morreu, não gostava. A música que vinha de seu apartamento era..., como direi.
E procurou no ar a palavra...
- Moderna?
- Ruim! Essa tal de
bossa-nova. E rock – e fez uma careta de reprovação. O dia inteiro. Ou melhor,
quando estava em casa.
Sabia que ela estava em casa
pela música que vinha de lá. Além disso, não foram poucas as vezes em que ela dera
festas freqüentada por gente como ela. A cantoria ia até de manhã. Rapazes e
moças com violões de baixo do braço entravam e saíam do apartamento dela sem a
menor cerimônia. Reclamei com o porteiro e com o síndico. Minhas reclamações
estão registradas em ata. Mas nada foi feito.
- A senhora imagina o que
pode ter acontecido?
- Alguém a matou, não está
claro?
- Mas por que alguém a
mataria?
- Por não gostar da música
que ela ouvia? Não, se eu disser isso, é capaz de a polícia me incluir entre os
suspeitos.